Por vezes, comentamos ou pensamos para nós «Que bom seria não existir», pensamento esporádico e irrefletido, geralmente associado a momentos da nossa vida assoberbados ou de aflição. Mas e se, estando a viver neste planeta, de facto não existíssemos? Como?!
Pelo isolamento geográfico e físico da nossa aldeia ou habitação que não tem estradas para lá chegar. Pela falta de meios de comunicação como a rede móvel, contando apenas com o sinal de rádio do país vizinho que fala noutra língua. Pela circunstância de termos nascido numa família em pobreza extrema e com um dos membros portador de uma deficiência incapacitante que nos limita a todos nas ausências. Pela falta de fontes de água em condições de salubridade que nos deixam sem força para estudar, trabalhar e sem capacidade para regar a horta. Pela ausência de mercados num raio de 60 km que nos permitam comprar sementes ou alimentos nutritivos. Pela ausência de transporte. Quando não conseguimos registar os filhos: perdemos a nossa certidão durante a guerra civil e o caminho é longo até à capital de distrito. Quando a amiga da aldeia vizinha não pode levantar o corpo do filho jovem, que morreu no hospital, por falta de documentos que o identifiquem. Quando avançamos 30 km a caminhar até à estrada para encontrar transporte até ao registo, mas não conseguimos registar os dois filhos com mais de 14 anos por não termos o dinheiro necessário. Voltamos. Sem papéis, sem identidade, sem esperança.
Acompanhamento às ativistas nas visitas domiciliárias (Catembe, 2021)
São estas as pessoas “invisíveis” e em pobreza extrema do distrito de Matutuine, em Moçambique, que a VIDA, desde 2019, tenta resgatar para uma existência digna e justa. Quer através do acompanhamento de uma rede de ativistas (voluntárias) de proximidade que, conhecendo a sua aldeia e aldeias vizinhas, identificam e apoiam as famílias em extrema vulnerabilidade nas questões da saúde materno-infantil, nutrição e apoio social; quer através da criação de um programa piloto de sinalização em tempo real (com introdução dos dados via tablet/telemóvel) destas mesmas famílias junto do sistema de Ação Social do Estado a nível distrital e provincial. Graças ao trabalho deste ano, e apesar da situação pandémica provocada pela Covid-19, foram acompanhadas mensalmente, em 23 povoados, 1361 famílias e sinalizadas 203 famílias em risco para os serviços competentes. Foram também registadas (com o apoio do Estado) 664 crianças menores de 14 anos. Face aos resultados positivos, o Serviço Provincial de Assuntos Sociais solicitou à VIDA a extensão deste programa para a toda a província de Maputo: sete distritos com uma área total de 22 693 km2.
Como referem Duflo e Banerjee, premiados com o Nobel das Ciências Económicas em 2019, «a questão é simples: falar acerca dos problemas do mundo sem falar acerca de algumas soluções acessíveis é a via para a paralisia e não para o progresso. (…) é realmente útil pensar em termos de problemas concretos que podem ter respostas específicas.»
Em 2022, a VIDA celebra o seu 30.º aniversário. Ao longo de 30 anos, tentámos, de forma próxima e cuidadosa, conhecer profundamente os problemas que afetam os mais pobres do mundo, assim como o potencial e a riqueza de cada um. Só assim julgamos contribuir para responder, de forma concreta, à complexidade de cada um dos problemas que afetam ainda hoje milhões de pessoas no mundo. Pessoas que partilham connosco as mesmas fraquezas e os mesmos desejos; a única diferença reside – como bem referiram os laureados citados anteriormente – «nos aspectos que tomamos por garantidos e nos quais pouco ou nada pensamos». Para continuarmos o nosso trabalho, precisamos de si: do seu donativo, do seu apoio na divulgação do nosso trabalho.
Hoje pode ser um bom dia para começar! Vamos fazer do nosso mundo, um mundo melhor!
Feliz ano novo!
Às famílias que, mesmo sem documentos, têm um nome
Às ativistas da UAAMAT (União das Associações Agrárias de Matutuine) pela coragem e enorme esforço
Às equipas VIDA por acreditarem sempre que é possível
Aos doadores que confiam no nosso trabalho
Por Patrícia Maridalho
Gestora de projetos