Escrevo-vos enquanto aguardo a chegada de mais ASC [Agentes de Saúde Comunitária], aqui em Santa Luzia [uma das áreas sanitárias de Bissau]. O Responsável da Área Sanitária que também é o Técnico Supervisor, está na equipa de resposta rápida ao COVID-19.

Estou numa escola meia devastada pelo tempo e pela falta de apropriação – é o tempo que dedicamos às coisas que nos aproxima delas, gerando cuidado, já nos ensinou o Principezinho. Não pode haver cuidado quando na Guiné-Bissau a escola é frágil e intermitente. A Guiné também. É uma flor bruta, forte e frágil. É uma flor sorridente, resiliente. É uma flor que todos nós devíamos ter no nosso jardim.

(desculpem a poesia do momento, mas a manhã conVIDA a isso)

Os ASC que foram chegando – creio que não chegarão mais – valeram por tudo. Valeram pelo cansaço, pelos momentos de frustração, pelas horas a fio de trabalho, pela incerteza que se amplia nas paredes do nosso escritório, no teclado do computador… Somos uma máquina luso-guineense invisível que faz com que este apoio aconteça e seja digno. Temos de ser peças mais oleadas e funcionais. Não podemos parar, mesmo quando, por vezes, nos rasgam a paciência. Não são eles, somos também nós.

Os ASC que vieram tinham a dignidade de quem continua a fazer. A coragem de se assumirem, de responderem pelos seus relatórios e pelos seus dados. De responderem pelas suas famílias. Foram momentos rápidos, de conversas curtas e significativas. Foram momentos que me fizeram centrar e perceber porque sou Responsável de Qualidade e Formação. Não quero perder o contacto com o chão, com as pessoas, com a voz e o olhar por detrás dos relatórios. E tenho estado longe, preciso reaproximar-me dos motivos, ser a expressão dos motivos!

O Joanito é ASC e artista. O Suaibo por sua iniciativa já sai à rua com megafone na mão e faz sensibilização sobre o COVID-19. A Mónica percorre os seus agregados para prevenir, aconselhar, apoiar. A Teresa diz que quer fazer sensibilização mas precisa de álcool para se proteger. Diz que todos os colegas precisam. O Lázaro diz que tem 51 agregados familiares atribuídos, mas visita 55. São agregados que ficaram a descoberto após a reestruturação do Setor Autónomo de Bissau e que vivem perto dele, ele não quer abandoná-los. Todos dizem que gostavam de continuar a fazer tratamentos, todos dizem que é necessário mais ASC nas ruas de Bissau.

Há uma solidariedade vibrante e autêntica, eles mostram-me o mundo e destroem qualquer tendência de crítica que, por vezes, gero. Seria possível fazerem mais? Sim, mas não têm meios. Nem nós capacidade para lhos oferecer. É um mundo às avessas. É um mundo no sítio certo.

Estou de coração cheio e os pássaros cantam, há vozes ao longe, a sala cheira a pó velho, há música, choro de bebé. A vida acontece.

Quase a acabar… quando nos questionarmos dos motivos pelos quais continuamos ou dos motivos pelos quais fizémos e nem sentimos nenhum reconhecimento, esta pode ser uma resposta não paliativa: estamos nesta rede verdadeiramente humana, sem nós o trapezista entra em queda livre. Sem eles, nós também.

Por fim, e em modo de clarividência matinal, estes micro-encontros valeram por muitas reuniões longas e chatas. Foram momentos simples, mas de real comunicação. As práticas já estão lá, são sabedoria adquirida. Mas a reflexão, o riso partilhado, o reconhecimento, a aprendizagem mútua não.

Acho que devemos repensar nas reuniões, no peso que têm e dar-lhes a leveza certeira para serem eco.

Um abraço a todos.
Ainda há muita beleza neste mundo.

Carolina Rodrigues
Responsável de Qualidade e Formação
Projeto de Saúde Comunitária para as regiões sanitárias de Bissau, Biombo e Cacheu